Parecer histórico sobre a naturalidade do sábio Manuel de Arruda Câmara

José Tavares de Araújo Neto

Manuel de Arruda Câmara ergue-se como uma das figuras mais notáveis do Brasil colonial tardio. Padre, naturalista, médico, botânico e ideólogo, ele foi também fundador do Areópago de Itambé, um dos primeiros núcleos de difusão de ideias iluministas e republicanas no país. Por sua atuação intelectual e cívica, ganhou destaque nas conspirações que antecederam movimentos como a Revolução Pernambucana de 1817. Apesar disso, a sua origem geográfica permaneceu envolta em incertezas, sendo tema de debate desde o século XIX.

Parte dessa confusão decorre de registros da Universidade de Coimbra, que apontavam Manuel e seu irmão Francisco como provenientes dos “sertões da Capitania de Pernambuco”. À primeira vista, isso poderia sugerir um nascimento pernambucano, mas é preciso contextualizar: à época, a Capitania da Paraíba do Norte estava subordinada administrativamente a Pernambuco, de modo que estudantes da Paraíba eram oficialmente enviados à universidade portuguesa por intermédio da capitania vizinha.

Em 18 de setembro 1871, o Diário do Rio de Janeiro, publicou a ata de uma reunião da Sociedade Vellosiana. Na sessão de 5 de setembro de 1871, presidida interinamente pelo Conselheiro Beaurepaire Rohan, a Sociedade Vellosiana discutiu, entre outros assuntos, a vida e obra do botânico brasileiro Manuel de Arruda Câmara.
Uma carta de Raposo de Almeida, de Goiana (PE), trouxe informações relevantes, confirmando que Arruda Câmara nasceu na antiga vila de Pombal, hoje cidade da província da Paraíba”. O documento relatou que Arruda Câmara foi inicialmente religioso e professor no convento do Carmo de Goiana, mas abandonou o hábito e a ordem, partindo para a França, onde se doutorou em medicina na Faculdade de Montpellier.
Posteriormente, participou de uma academia científica no Rio de Janeiro e faleceu no Recife. Parte dos manuscritos de suas pesquisas sobre a Flora foi lamentavelmente usada por um fogueteiro para fazer cartuchos de pólvora, mas cerca de 450 folhas ainda existiam em Pernambuco, as quais Raposo de Almeida buscava preservar.
A Sociedade Vellosiana decidiu enviar um voto de agradecimento ao Senhor Raposo de Almeida por suas pesquisas sobre a vida e obra de Manuel de Arruda Câmara e se comprometeu a envidar todos os esforços para recuperar os manuscritos de Arruda Câmara.

Em 1931, o intelectual Mário Melo, no Jornal Pequeno, de Recife, reconheceu a dificuldade de estabelecer a naturalidade de Manuel de Arruda Câmara, afirmando que ela “ainda não está suficientemente esclarecida”. Sete anos depois, ao responder a um leitor, detalhou a controvérsia: enquanto algumas fontes, como Liberato Bitencourt, indicavam Pombal, Paraíba, outras, como Manoel Joaquim de Macedo, sugeriam a comarca das Alagoas. Mesmo diante da ausência de documentação definitiva, Melo propôs uma solução conciliatória, situando o nascimento na região do Areópago, território que pertencia à capitania de Pernambuco, mas limítrofe à Paraíba (Itambé/PE – Pedras de Fogo/PB).

Essa incerteza não é fruto da historiografia recente, mas uma questão histórica enraizada, alimentada pela escassez de registros primários, pela complexidade das divisões territoriais coloniais e pelo regionalismo, que busca reivindicar para si a genialidade de uma figura tão seminal.

O pesquisador pombalense Wilson Seixas defende que Manuel nasceu em Pombal, Paraíba, embora não seja possível precisar a data ou o local exato. Para Seixas, os registros antigos revelam que a família Arruda Câmara tinha forte vínculo com a vila desde meados do século XVIII. Documentos do cartório e da paróquia confirmam a presença de Francisco de Arruda Câmara, pai de Manuel, na região antes de 1754, atestando seu envolvimento nos assuntos públicos e privados locais.

O testamento do padre Antônio Saraiva, de 1754, mostra que a mãe de Manuel, Maria Saraiva da Silva, ainda era solteira naquele ano, o que inviabiliza a ideia de que Manuel teria nascido antes dessa data. Documentos posteriores comprovam que os pais se casaram apenas em 25 de fevereiro de 1764. O registro de casamento, localizado pelo pesquisador Hélio Ramos, indica que Francisco de Arruda Câmara e Maria Saraiva de Araújo contraíram matrimônio na Capela de São Caetano, então termo da Vila do Icó – hoje Várzea Alegre, Ceará.

Após o casamento, o casal passou a residir na Fazenda Várzea do Tapuio, como a conhecemos hoje, ou Várzea da Tapuia, como aparece em documentos da época, situada na ribeira do Patu, no termo da povoação de Piancó, Capitania da Paraíba do Norte. A propriedade havia sido herdada por Maria Saraiva de seu tio, o padre missionário Antônio Saraiva de Araújo. O testamento do padre detalha a propriedade:

“Consta da escritura que se acharem nos meus papéis e assim mais na ribeira do Patu, no riacho chamado dos Porcos, do sítio São Francisco, no lugar chamado ‘Várzea da Tapuia’, com 700 cabeças de gado vacum, ou o que achar, 8 cavalos de fábrica e 30 éguas, ou o que se acharem, 3 escravos, a saber: Ignácio da Guiné, Pedro e Maria, também da Guiné, e assim mais ações, freios e ferramentas do uso da fazenda…”.

A fazenda tornou-se a residência principal da família, conforme escritura pública de 20 de fevereiro de 1776, registrada no Livro de Tombo, na qual se declara que ali residia o capitão-mor Francisco de Arruda Câmara, acompanhado de sua esposa e filhos, que certamente ali nasceram.

Diante desses elementos, é indiscutível que Manuel de Arruda Câmara nasceu no sertão da Paraíba, mais precisamente no termo da povoação do Piancó — seja na fazenda Várzea do Tapuio/Várzea da Tapuia, seja na própria vila. A associação a Pernambuco decorre apenas de circunstâncias administrativas relacionadas à Universidade de Coimbra.

A vida de Manuel de Arruda Câmara sintetiza múltiplos papéis. Como naturalista e botânico, explorou e documentou a flora nordestina; como ideólogo e fundador do Areópago de Itambé, disseminou ideias iluministas e republicanas, deixando um legado intelectual que o credencia como um verdadeiro semeador da democracia no Brasil colonial

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